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מְנַוֵּוט בְּאֵינְסוֹף

MENAVÉT BE'EINSÓF

 

CIDADE CIBERNÉTICA

Coletânia De Contos Pós-Apocalípcos

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OLHO POR OLHO

 

2038 P.H.A[1]

           

Um único olho estava preservado dentro de um velho vidro de cerejas colocado na prateleira de madeira logo atrás do balcão do antigo bar.

 

- Vocês querem saber a história desse olho? – Bradou um velho de cabelos e barbas totalmente grisalhos que servia destilados caseiros atrás do balcão para um grupo de andarilhos que bebia e conversa em uma das mesas.

 

- Sim! - Disse um dos já quase bêbados à mesa. – Uma história de horror vai nos manter acordados enquanto bebemos. Completou.

 

O velho atendente, pegou o vidro com o olho e se dirigiu à mesa colocando no meio aos olhos de todos. Puxou uma das cadeiras e se sentou à roda. - Eis a história...

 

O replicante corria pelo árido tapete do deserto ao lado da antiga ferrovia usando toda sua força sobre humana. Corria para salvar sua vida e o segredo que protegia. Dunas preenchiam sua visão servo-biônica para onde quer que ele olhasse. Dezenas de metros atrás dele, uma velha Scania a diesel fabricada em meados dos anos 70, o perseguia com seus velhos pneus adaptados para areia. Era guiada por um velho caçador de replicantes, o mais temido deles, um homem de meia idade cujo nome causava pavor aos clones: Nimrod.

 

Se conta nas lendas que o inferno havia reencarnado na terra e que esse era o seu nome. Não havia misericórdia para aqueles replicantes capturados por ele. Eram mutilados ainda vivos e com crueldade. Alguns eram torturados durante muitos dias, pois, Nimrod sempre deseja descobrir o esconderijo dos replicantes.

 

A caçada já durava dez dias. Adão-248 corria tentando se salvar. Precisava chegar as rochas no deserto e depois dela à grande cratera, sítio da detonação termonuclear Hades[2], como ficou conhecido o inferno termonuclear que emergiu dela. Ali, a radiação mataria quase que instantaneamente qualquer humano pois os replicantes eram imunes.

 

Os replicantes não possuíam nomes. Eram tatuados com um número luminescente dentro da órbita inferior do olho direito. O preconceito para com os clones ainda era mais forte do que havia sido para com os afrodescendentes antes do holocausto atômico. Replicantes quando capturados, eram torturados como numa inquisição católica da idade média.

 

Adão cruzou a velha ferrovia entre dois vagões destruídos e abandonados que compunham uma velha locomotiva saltando para o outro lado entrando na zona de radiação, ganhando uma vantagem sobre seu algoz que certamente não desistiria de o perseguir. Em seus pensamentos enquanto corria, a imagem de sua bela esposa replicante, Eva-252, o inspiravam a prosseguir e salvar sua vida. Um profundo segredo que Eva carregava o inspirava ainda mais a prosseguir lutando por sua existência. Era esse segredo que ele precisava proteger a qualquer custo.

 

Órgãos de replicantes eram uma relíquia valiosa no mercado de órgãos e sempre havia um doente preconceituoso da elite pós-apocalíptica disposto a pagar qualquer preço por um órgão para transplante.

 

Nimrod parou a caminhão, desceu e se se vestiu com um macacão contra radiação ganhando uma proteção de cinquenta minutos para continuar a caçada. Ajeitou a máscara antigases e voltou ao volante da besta, como chamava sua velha Scânia e acelerou atravessando entre os vagões arremessando ferros retorcidos para todos os lados. E, ele ainda possuía um trunfo. O cavalo possuía um motor envenenado pronto para ser usado uma única vez.

 

- Agora eu pego você, pele falsa! – Declarou para si mesmo o caçador do inferno. – Vou arrancar e vender seus órgãos por bons créditos. – Completou. Num mundo pós-apocalíptico não havia dinheiro e tudo era negociado ou trocado por créditos.

 

Cem metros os separavam um do outro. Adão estava quase chegando às rochas quando Nimrod ligou o gás envenenando o motor da Scania que arrancou possante dando um salto à frente.

 

De repente, a dor! Um arpão atravessou a cocha esquerda de Adão-248 antes que ele chegasse às rochas. O puxão o arremessou para atrás em direção ao cavalo à diesel. Adão caiu de costas na areia escaldante e quando abriu os olhos, o caçador infernal já estava sobre ele brandindo um punhal serrilhado ao sol.

 

- Esses seus olhos especiais, valem muitos créditos no mercado negro de órgãos. – Disse exibindo um sorriso diabólico.

 

A faca entrou abaixo da orbita esquerda de Adão e ele pode sentir enquanto Nimrod o cortava e, então, tudo escureceu. Acordou alguns minutos depois sob aquele sol vermelho infernal. Enxergava apenas com o olho direito...

A vingança acabava de nascer. Adão-248, o replicante, não descansaria enquanto não desse fim à existência do maligno Nimrod e enviasse suas almas de volta ao Hades e não, certamente antes, de lhe arrancar o olho esquerdo e faria isso para proteger Eva-252 e o grande segredo que ela carregava.

 

- Olho por olho... - Balbuciou antes de desmaiar novamente. Dois anos se passariam antes que Adão pudesse realizar sua vingança e, até lá, Eva estaria protegida e seu segredo guardado pelo tempo que havia sido determinado.

 

Adão, juntou todas as forças que lhe haviam sobrado e se levantou. Rasgou um pedado de suas já maltrapilhas roupas e fez uma bandagem cobrindo a órbita esquerda vazia do olho que se lhe havia sido arrancado e retomou sua jornada em direção à Nova Saféd onde Eva, segura e protegida dos caçadores de replicantes, o aguardava.

 

Atravessando Hades, contemplava as inúmeras estacas com cadáveres de caçadores de replicantes pendurados sobre elas, troféus de uma tribo de clones que residia nas cavernas escavadas nas rochas, um aviso aos caçadores que, desavisados, se aventurassem pelo Hades em busca de replicantes.

 

- Olho por olho! – Balbuciava para si mesmo enquanto deixava suas pegadas pelo Hades, o local da grande cratera, o vale dos Replicantes. – Olho por olho... – Sussurrava.

 

- E ele o pegou? – Interrompeu um dos andarilhos à roda ao redor da mesa.  O velho puxou o vidro e o virou para o duvidoso. – Óh, sim, ele o pegou...

 

[1] Pós Holocausto Atômico.

[2] Inferno em Grego.

 

Autor

Bën Mähren Qadësh

Crepúsculo 778

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O RITUAL

 

 

"Lembranças, fragmentos de pensamentos que tivemos, vidas que vivemos. Este é o nosso purgatório, nosso inferno. Sim, estamos mortos. Nós destruímos a terra e já não mais vivemos e tudo o que nos restou foram as lembranças, fragmentos de pensamentos que tivemos. Estamos mortos agora...".

 

Poesia dos Estropiados

 

Recitavam as muitas vozes, um aglomerado de mutilados radioativos que viviam em cavernas nos subterrâneos dos desertos atômicos, os Menutaqim[1], reunidos na chamada Gruta da Radiância, dentro da qual se agrupava na data anual do brilho nucelar. Era o que chamavam agora de “O Ritual”. Muitas velas feitas a partir do óleo extraído de uma planta da família das oleáceas, a Osmanthus Decorus, que cresce nos desertos da antiga Turquia, acesas distribuídas entre os habitantes da furna e espalhadas pelo lugar, iluminavam o ambiente da gruta e através de suas luzes cintilantes se podia distinguir os estropiados sobreviventes do Holocausto atômico e seus filhos nascidos depois do Ocaso da humanidade. A poesia recitada uma vez a cada 778 dias[2] na data das detonações atômicas que assolaram a humanidade é chamada de “O Poema do Ocaso” e havia sido canalizada por um judeu místico que fora chamado depois do Holocausto, claro, de “O Profeta Do Fim Dos Dias”, declamado ao som de um único instrumento de cordas e sob as luzes de 778 tochas acesas seguras pelas crianças nascidas após o cogumelo nuclear num dos dois únicos idiomas que lhes havia permanecido, suas línguas natais, o Esperanto e o Latim:

 

          “Ni detruas la teron kaj ni ne plu vivas, kaj ĉio, kion ni forlasis, estas la memoroj, fragmentoj de pensoj, kiujn ni vivis, tio estas nia purgatorio, nia infero. Ni mortis nun...”

 

Declamaram a 778º e última vez abaixando as cabeças em silencio por 778 segundos contados por uma ampulheta de areia, treze longos minutos na calada do ocaso vermelho do dia dezesseis de julho de cada ano, silencio quebrado apenas pelo pranto nascido da lembrança do Holocausto Nuclear.

 

A contagem para o Ritual se iniciava quarenta e oito dias antes da data das detonações e, então, no 778º dia a celebração fúnebre tinha início.

 

Depois de o declamarem em Esperando, as mulheres o repetiam declamando-o em Latim, sua segunda língua para a perpetuar e também ensinarem o idioma aos sobreviventes.

 

            “'Memories cogitationes superaverunt fragmenta ne habebat vivimus habitat. Hic noster purgatorium nostrorum inferno. Ita, mortui sumus. Nos terram et destrui non vivet: et omnis qui suus reliquisset nobis in memoriam, cogitationes fragmentorum plenos habebamus. nos autem mortuus es ... ".

 

- Agora vamos recitar a Poesia do Silencio – conclamou com voz suave o líder dos cavernantes estropiados sobreviventes do Shoá Atomit[3], um homem alto com o deformado rosto coberto por trapos velhos em cujo rosto lhe faltava um olho, o esquerdo e na qual se podiam ver os ossos da face.

 

            "Silêncio! As vozes se calaram. O único som que ouço é o do vento uivando sobre as pedras, ruínas das antigas construções, monturos assolados pelo tempo que os castiga como um chicote invisível. Mesmo os demônios estão em silêncio agora...

Não ouço mais o coaxar dos sapos e nem o som dos grilos que preenchiam a noite com suas canções. O galo se foi. Sua voz foi calada há quarenta e dois invernos. O único som agora é a voz síntese do velho hardware, aquela cabeça metálica de olhos vermelhos colocada em cima do velho balcão de mármore.

- Água senhor? – Ela pergunta – O teor de radiação está baixo hoje – terminou. A mesma música entoada uma vez na semana. As vozes? Elas se calaram. Os demônios estão em silencio agora.

Ahh! Eu desejava ouvir a voz do velho rabino, aquele de barbas brancas de longos peyot, quando ele dizia para prestarmos atenção às pequenas vozes, as vozes dos humildes, andarilhos iluminados, centelhas do alfabeto místico, avisando a humanidade que o dia chegaria, quando as vozes se calariam.

Lá no interior, os demônios continuam em silêncio. Suas vozes foram silenciadas pela voz da maldade que plantara residência na câmara esquerda do templo do coração do homem.

O gueto está frio hoje. Pessoas se reúnem ao redor do fogo aceso dentro do velho barril de petróleo, sangue negro, chamavam-no. Ele não existe mais. As veias estão secas e o sangue já não corre mais...

As manchas brancas cobrem a pele. Deveria ser um bom sinal, mas não é. A lepra voltou devorando a alma dos homens, mulheres e crianças. Nem os animais escaparam. Os contaminados são exilados. Eles os mandam para o vale do esquecimento onde a voz jamais se reerguerá. Eles a usaram maliciosamente. Difamaram com ela. Suas calunias foram lançadas ao vento como as folhas do velho carvalho que ficava na floresta de Chaiim. Ele também se calou. O vento já não uiva mais por entre os seus frondosos galhos.

Ahh! Onde está a voz do rabino? Foi calada pelos religiosos dogmáticos. Suas centelhas luminosas já não mais crepitam pelo ar. Mesmo os demônios não falam mais. Calaram-se no interior.

Onde estão as vozes dos poemas e dos poetas? Calaram-se também. Elas causavam comichões nos ouvidos da humanidade. Elas acusaram: - Foram os poderosos, os líderes das nações, em seus palácios decorados com sangue. Sangue dos inocentes. Eles as fizeram calar. Elas causavam comichões aos ouvidos do poder.

O brilho nos cegou os olhos. Foi em 2029. Detonaram a velha arma russa trocada por um pedaço de pão para alimentar as crianças famintas. Todas elas morreram com o calor nuclear.

Silêncio! As vozes se calaram. O único som que ouço é o do vento uivando sobre as pedras, ruínas das antigas construções, monturos assolados pelo tempo que os castiga como um chicote invisível. Mesmo os demônios estão em silencio agora...

Ah! Onde está a voz do velho rabino? Eu desejava ouvi-la agora. Calou-se. Mesmo lá no interior há silencio agora, nem mesmo os demônios sussurram mais."

 

Silencio... declamaram os Menutaqim, os estropiados, mutilados radioativos, almas sobreviventes em casulos apodrecidos.

 

        “Quais mistérios poderia haver agora para aqueles cujas os ossos das faces lhes são visíveis” – Dizia a velha placa feita de madeira com estes dizeres escritos à mão e fincada na entrada do desfiladeiro que conduzia à vila dos estropiados.

 

As recitações haviam durado grande parte do dia e agora que o poente vermelho se aproximava, todos sairiam das cavernas e grutas para contemplar o Ocaso rubro na data do holocausto nuclear celebrada a cada dois anos e centro e trinta e dois dias. Mesmo num mundo destruído pela imolação atômica, o poente carmim eram mesmo contemplativo.

 

         “E agora não haverá mistérios, pois, a lua não brilha mais, ela cintila sangue e as faces contemplam o rubor do perpétuo ocaso vermelho, o reflexo carmesim do próprio pecado” – declamava ao poente rubro todos os dias o Profeta do Final dos Tempos, o andarilho das sendas cintilantes da antiga sabedoria. “E agora não haverá mistérios...”

 

[1] Mutilados

[2] Dois anos e cento e trinta e dois dias.

[3] Hebraico para Holocausto Atômico.

 

Autor

Bën Mähren Qadësh

Crepúsculo 778